terça-feira, 23 de junho de 2020

Do que pensamos que é a vida dos outros, que raramente é o que a vida dos outros realmente é...

Soubemos este fim-de-semana da morte do actor Pedro Lima e muito se tem dito e escrito sobre isso nos últimos dias. Por todo o lado, se multiplicam as fotografias, as homenagens, as últimas palavras, as mensagens de apoio.

Também não têm faltado os textos de partilha de quem já passou por uma depressão, de quem já esteve no fundo do poço, de quem já viu de perto o difícil que a vida pode ser. Partilham-se desabafos, desenterram-se fantasmas, dão-se conselhos. Por todo o lado, a mensagem é unânime: não tenham vergonha e peçam ajuda.

O problema reside, precisamente, aí: pedir ajuda. Sobretudo, pedir ajuda em relação a algo que ainda é tão tabu na nossa sociedade. Nós não falamos sobre saúde mental. Nós achamos que tudo o que diga respeito ao foro psiquiátrico, é coisa de maluquinhos. Nós não estamos conscientes para procurar em nós sintomas de um possível desequilíbrio mental. Falando pelas mulheres, dizem-nos para fazermos citologias, para fazermos o auto-exame do peito, para controlarmos os sinais e manchas que temos no corpo e a sua evolução, e todo um sem fim de coisas a que devemos estar atentas, cuidando do nosso corpo, que é só um. Mas em momento algum nos dizem para estarmos atentos ao que nos vai na alma, ao que nos passa pela cabeça, ao nosso estado de espírito. Não há um despiste, não há uma lista dos sinais de alerta a que devemos prestar atenção, não há um protocolo de como devemos cuidar da mente, como cuidamos do corpo.

Se estamos em baixo, é porque a vida é difícil, é a pressão do trabalho, é o dinheiro que não estica, é a rotina do dia-a-dia que cansa. Se estamos desanimados, dizem-nos que logo passa, que as férias estão aí à porta, que uma noite de copos tudo resolve.

Se um amigo tem febre, não hesitamos em dizer-lhe que tome paracetamol e que vá ao médico, caso não passe. Se um amigo nos diz que se sente sistematicamente em baixo, na melhor das hipóteses, sugerimos um jantar, uma conversa para desabafar. Na pior das hipóteses, trocamos umas mensagens com palavras de consolo e assobiamos para o lado, que isto a vida é difícil para todos e todos temos os nossos problemas.

É fácil dizer: peçam ajuda. Difícil é oferecer essa ajuda a quem é incapaz de a pedir. Porque pedir ajuda é uma tarefa hercúlea para quem nem percebe bem o que se passa consigo... Quando achamos que estamos, de facto, maluquinhos, torna-se difícil, senão mesmo impossível, reconhecer isso perante os outros, quanto mais pedir ajuda!... O problema das doenças do foro psíquico é que, raramente, nos apercebemos delas. Raramente temos consciência que delas padecemos. Raramente percebemos que precisamos de ajuda. E vamos andando, no lento correr dos dias, de sorriso de dia e lágrimas de noite, num desespero profundo, sem perceber o que se passa, achando que está tudo bem e que nós é que fazemos tempestades em copos de água, que temos tanta coisa boa na vida, que somos uns ingratos e insatisfeitos permanentes. À nossa volta, tudo nos diz que devíamos estar felizes. Dentro de nós, tudo nos faz sentir miseráveis. E não percemos. E, em não percebendo, também não percebemos por que raio haveríamos de pedir ajuda, se nem saberíamos para quê pedir ajuda. 

A depressão é uma merda. É uma grandessíssima merda. Porque não é visível. Porque não vem no relatório de um exame. Porque ainda olhamos para ela como uma coisa abstracta, intangível, subjectiva. E é uma merda. 

E enquanto, todos e cada um de nós, não mudarmos a forma como olhamos para a nossa saúde mental, enquanto não formos todos sensibilizados desde cedo para tomarmos conta do espírito como tomamos conta do corpo, vai continuar a ser uma grandessíssima merda. Porque vamos continuar sem pedir ajuda. E vamos continuar a assistir a estas tragédias que nos deixam em choque, impotentes, culpados. 

7 comentários:

  1. Muitíssimo bem escrito e assertivo!
    Cada área do nosso corpo tem um especialista, e a mente naturalmente não foge a essa regra. Mas se é normal termos um problema, por exemplo num pulmão, recorrermos a um pneumologista, ainda há quem tenha receio de ir a um psiquiatra ou psicólogo por admitir ter um problema nessa área, o que implica aos olhos dos ignorantes um problema mental que é o mesmo que dizer é maluquinho, como dizes e bem.
    Sei do que falo, pois em 1991 tive uma forte depressão por excesso de trabalho. Ou melhor, por não saber na altura gerir esse volume. Foram 6 meses de baixa e quando regressei, nos primeiros dias havia quem falasse comigo como quem estava a falar com um maluquinho. A vantagem da minha depressão foi não estar associada a um problema concreto e de difícil resolução na minha vida mas apenas, como disse, a excesso de trabalho. E a ajuda que recebi foi fundamental pois tornei-me forte e inteligente a gerir tudo, nunca mais caindo nos mesmos erros. E porquê este sucesso? Porque não tive qualquer problema em pedir ajuda a quem a podia dar, ignorando preconceitos bacocos. Mas olha que mesmo assim, houve quem no emprego ficasse para todo o sempre com a imagem duma pessoa que fraquejou e que iria fraquejar novamente, não vendo a "fortaleza" em que me tornei. E a psicoterapia que recebi, funcionou não só para esse aspecto mas também para outros não relacionados. Aliás, é recorrente dizerem que era mentalmente forte nas corridas. Se corresse antes de 1991, não o seria certamente. Mas também sei que é fácil dizer estas palavras mas quem está com um problema assim, em grande parte dos casos é muito complicado reconhecer e dar esse passo. Como se esse passo fosse cair num abismo em vez de salvar essa queda. Há que ter bons e compreensíveis amigos para, de forma subtil, ajudar, caminhando ao lado.
    Beijinhos e tudo de bom. Felicidades para o que aí vem :)

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    1. Bom, não imagino o que terá sido passar por isso há quase 30 anos! Ainda hoje, não é fácil, quanto mais nessa altura... Ainda bem que conseguiste reconhecer os sinais, ultrapassar os estigmas, pedir ajuda, e cuidar de ti, como se de outra qualquer doença se tratasse.

      E sim, a imagem que os outros fazem de nós é muito essa... Mas resta-nos ignorar. Quem não nos conhece, também não nos interessa, não é verdade?

      Obrigada pela partilha da tua história. Foi bom saber de onde vem toda essa tua força e o prazer pela vida :)

      Beijinhos e obrigada!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Não sei a realidade de outros países mas em Portugal mal se aceita que alguém esteja doente, fisicamente, quanto mais mentalmente.

    Não é doença, é algo que a maior parte das vezes é tido como fraqueza, como não conseguir gerir a vida, ou as várias partes da nossa vida ou pior, ronha, imprestável, não querer trabalhar, preguiçoso.

    Por outro lado, lideramos a Europa na toma de antidepressivos e ansiolíticos.

    Curioso? Ou mais um sintoma de hipocrisia reinante?

    Como o João deu este importante contributo para o tema com o seu caso particular apenas refiro dois casos que tive conhecimento, um bem próximo e deu para perceber pela reação de colegas de trabalho, alguns familiares e até num dos casos, do próprio, a dificuldade em aceitar esta questão.

    Beijinhos e mantenham-se saudáveis e felizes

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    1. Acho que o facto de liderarmos a toma de ansioliticos é antidepressivos está ligado ao facto de, na maior parte dos casos, não tentarmos resolver o problema, mas apenas disfarçâ-lo. Tomamos umas drogas e fingimos que está tudo bem, em vez de tentar resolver o que se passa... Depois os resultados estão à vista.

      Ainda temos um longo caminho a percorrer neste campo...

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  4. A depressão é uma doença ainda muito desvalorizada. A Ana Bacalhau lançou uma música ainda antes da tragédia.
    https://www.youtube.com/watch?v=b29lz1jvC-Q

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