Eu estava com mixed feelings em relação a esta prova e esta organização. De um lado, óptimas referências, de outro, alguma confusão e desinformação desde o lançamento da prova.
Nos últimos dias, a organização deu tudo a anunciar patrocinadores, brindes, ofertas, gravações gratuitas nas medalhas, massagens, porco no espeto, ovos moles e tudo e mais alguma coisa. As expectativas foram subindo, mas continuava receosa porque não deixava de ser uma primeira edição de uma maratona (que é coisa que eu não imagino sequer o que seja organizar).
Mas avancemos até ao dia M. Dia 28 de Abril de 2019.
Não dormi nada de jeito, claro. Acordei eram duas e meia da manhã, em pânico, porque ouvia barulho na rua e achava que já era de manhã e que tínhamos adormecido. Não adormecemos. Mas também não dormi muito mais.
O despertador tocou e começou todo o ritual de preparação antes da prova. Pequeno-almoço do costume (continuo apologista de reservar apartamentos por causa disto), trânsito para ir à casa de banho (para a próxima, escolho um apartamento com duas casas de banho...), a comida a não querer entrar com os nervos a crescer, as últimas dúvidas na escolha das meias (deixei tudo escolhido de véspera mas as meias são sempre aquele drama...), telefonemas e mensagens de apoio. O tempo a passar e nós atrasados. Saímos de casa e fazemos uma mini corrida de aquecimento até ao Centro de Congressos.
Encontro a
Sofia e o
André. Depois a minha
Fabiana, a minha corajosa que acordou de madrugada para estar ali!
Já tinha feito xixi três vezes antes de sair de casa, mas ainda me pus nas filas para a casa de banho (que eram poucas...).
O tempo passou a voar e já estávamos na hora de partida. O louco mais louco do que eu foi para a sua caixa de partida, últimas despedidas e emoções ao rubro. Vou com a Fabiana até à minha caixa e acabo por encontrar o João Lima, com a Isa e o Vítor. Despeço-me da Fabiana e combinamos os pontos de encontro e toda a estratégia de suporte que ela tinha para mim.
Já tinha combinado com o João que iríamos tentar fazer os primeiros quilómetros juntos. O João queria ir um pouco mais depressa do que eu, mas a diferença não era muita, e ele fez a gentileza de aceitar ir comigo no início. E fomos.
A prova começou e lá fomos nós, dando início a mais uma longa jornada de 42,195km.
Os primeiros quilómetros não são os melhores. São onde se concentram a maior parte das subidas, passamos por uma zona industrial sem grande interesse e com pouco ou nenhum apoio, e vamos começando a entrar no ritmo para o que aí vem.
Felizmente, o tempo estava do nosso lado. Alguma neblina matinal, céu encoberto, sem vento. Temperatura fresca, mas não fria. Nesta altura, estava como se queria.
Lá vamos nós em direcção ao centro, para fazer a subida da mítica Lourenço Peixinho. Ninguém merece aquele empedrado!... Pelo menos, foi na parte inicial. Mas foi custoso... Felizmente, nesta fase já tínhamos mais apoio nas ruas e como íamos subir e descer esta avenida, sempre dava para ir olhando para ver quem vinha em sentido contrário.
Seguiu-se a passagem para a zona das salinas. E o verdadeiro início da prova, já sem quem ia fazer os 10km.
A parte das salinas era gira, ou foi isso que tentei pensar enquanto lá passava. Com o tempo que estava, a visibilidade não era muita, mas eu quis acreditar que sim. Eu não me estava a sentir particularmente bem desde o início. Sabem aquela euforia inicial que costuma aparecer quando começamos uma prova? Não apareceu para mim neste dia. Os quilómetros custavam a passar, as pernas não respondiam, o ânimo não aparecia.
Valeu-me o João Lima, a quem eu ia dizendo para seguir viagem, se quisesse acelerar. Mas o João ficou ao meu lado, sempre a falar comigo, a contar-me histórias, a partilhar experiências. Falámos muito de corridas, mas não só (obrigada pela partilha, João!). Falámos? Bom, na verdade, falou ele. Eu ia-me limitando a dizer que sim e que não, a soltar umas gargalhadas, e a acrescentar pouco à conversa. Não dava para mais. Mas seguíamos no nosso ritmo, à volta dos 6'30m/km.
Quando, por volta dos 14km, fizemos o retorno nas salinas, eu disse ao João para seguir, que estava a começar a morrer. Ainda nos rimos, ao relembrar que em cada Maratona morremos e renascemos muitas vezes. Mas o João não seguiu e continuámos juntos.
Ainda passámos pela Sofia, e deu-se a divisão da meia e da Maratona. Se não tivesse o João ao meu lado, acho que tinha pensado seriamente em seguir para a meia e desistir da Maratona. Será que mais vale uma meia feliz do que uma Maratona sofrida? Não sei. Talvez não. No Domingo, eu achei que não.
Passaram-se mais dois quilómetros e eu achei que não aguentava mais. Tinha a cabeça a mil, a pensar em tudo, a tentar ir buscar energias sem saber onde, a tentar encontrar motivação, mas não estava mesmo fácil. Disse ao João que seguisse, que eu não aguentava mais. Devo ter feito um ar tão grave e sério, que ele limitou-se a dar-me a mão e a despedir-se de mim. Ele seguiu, e eu encostei à berma, com o intuito de começar a caminhar. Mas não caminhei. Curiosamente, mandei o João embora e fiquei a vê-lo ali perto de mim, a ganhar distância a pouco e pouco, e a pensar por que raio o tinha mandado embora, se continuava a correr.
Mas a distância foi aumentando, o percurso foi piorando, e ao fim de dois quilómetros, tive mesmo de começar a caminhar. Estávamos com mais de 18km. Faltava mais de metade da prova. E eu já naquele estado... O futuro não se adivinhava muito risonho e eu começava a pensar o que raio estava ali a fazer.
Entretanto, pus os phones, para ouvir a minha música, e oiço a primeira mensagem via Endomondo: o meu Pai, a mandar-me força. Como não estava previsto haver live tracking da prova (a organização só o anunciou já depois de a prova ter começado...), tinha decidido levar o Endomondo ligado, para quem quisesse ir acompanhando, tendo a vantagem de o Endomondo permitir enviar incentivos durante os exercícios, que depois são lidos por uma voz robótica. Pouco tempo depois, recebo a primeira mensagem da Fabiana, que me deixa emocionada, com vontade de chorar baba e ranho, e que coincide com a chegada à Gafanha, numa zona onde voltamos a apanhar imensa gente a assistir (coisa que já não acontecia há algum tempo...). Entre as mensagens e o apoio do público, as emoções estavam a rubro. Viramos para uma rua mais deserta e eu tenho mesmo de encostar, e tentar respirar fundo, para controlar os soluços que se formavam na garganta. Caraças! Meses de treino não nos preparam para isto!...
A partir daqui, começou a segunda parte da minha prova.
Liguei à Fabiana, avisei-a de que tinha quebrado e para não se assustar com isso. Pedi-lhe que avisasse o louco mais louco do que eu, porque ia demorar bem mais do que o previsto. Estava relativamente bem, mas sabia que ainda tinha muito caminho pela frente e não estava em grandes condições de o fazer.
Na zona da Gafanha, e depois já na Barra, havia imenso apoio. Palmas para aquela gente toda! E eu já passei tarde... Imagino mais cedo! Havia gente a bater palmas, cartazes, crianças, adultos, velhotes. Também não faltavam voluntários e polícias a indicar o percurso (nisso, zero falhas!). Com este apoio todo, uma pessoa sente-se obrigada a fazer um esforço, não é verdade? E lá fui eu, andando e correndo, conforme conseguia.
Na passagem da Ponte da Barra ia distraída a ver quem lá vinha, e vi o louco mais louco do que eu, já a voltar para Aveiro, fresco e fofo como se nada fosse. Só lhe disse "esquece lá as 5 horas!". Foi também nesta Ponte que fui trocando incentivos com quem vinha em sentido contrário. Sobretudo, com as mulheres. Não tinha ideia de que éramos tão poucas mulheres na prova, mas isso só acabou por servir de elemento de união e de solidariedade espontânea!
Quando já ia com duas horas e meia de prova, lembrei-me que não tomava um gel há uma hora... Tinha definido tomá-los a cada 40 minutos, mas no meio da animação e da emoção, esqueci-me completamente. Também não deve ter sido por isso que quebrei tanto, não é verdade?
25km. Mais um abastecimento. Estávamos numa zona mais deserta, depois de termos feito parte da avenida principal da Barra, e seguia-se um trajecto junto à Ria. Começava também a estar mais sol e calor. Parei no abastecimento como se estivesse num trail. Comi, bebi, comi mais um bocadinho. Já se sabe que adoro laranjas nestas coisas... Acho que foi também aqui que comecei a fazer amigos. Entre trocas de olhares de desespero, palavras de ânimo e umas piadas secas, comecei a identificar aqueles que eram os meus companheiros de luta nesta fase. Segui viagem. Metade já estava e agora, mesmo que quisesse desistir, não tinha opção a não ser voltar para trás para Aveiro. Mais valia correr.
Continuei, caminhando e andando. Tentei ir alternando 800m a correr com 200m a caminhar. Nem sempre conseguia. Já não me lembro bem ao certo de quando foi, mas acho que foi já a sair da Barra e na ida de volta à Gafanha, em que comecei a falar com o Sr. Arlindo, que vinha a fazer mais ou menos o mesmo ritmo que eu. Ora eu passava por ele a correr enquanto ele caminhava, ora ele passava por mim a correr enquanto eu caminhava. Também na nossa zona andava a D. Helena, a quem acabei por dar da minha água, por não se estar a sentir muito bem (e o que ela me agradeceu!). O calor era já bastante, e eu ia despejando água em cima de mim, para tentar arrefecer. Lá fomos andando os três. Ela dizia que não podia parar de correr. Lá ia no ritmo dela, e iamo-nos passando conforme calhava. Eu e o Sr. Arlindo acabámos por fazer bastantes quilómetros juntos, puxando um pelo outro. "Vá, agora só até àquela placa", "Agora já chega", "Vamos correr mais um bocadinho?". Dei por mim a ser eu a puxar por eles. Eu! Eu que continuava sem saber o que andava ali a fazer...
Mas lá fomos, e fiquei a saber que era a primeira Maratona do Sr. Arlindo, que na véspera tinha estado a fazer um trail de 15km, e que tinha 52 anos. Perante isto, como é que eu me podia queixar, não é verdade?... Cala-te e corre, Inês!...
Continuamos no nosso regresso a Aveiro (finalmente!), e começamos a fazer contas à vida, que já não falta tudo, que vamos fazer cinco horas e pouco, que está quase...
E quem é que está no quilómetro 38 à nossa espera? A Fabiana, claro! Que festa! Que energia! Põe-se a correr ao nosso lado, dá-me as últimas palavras de ânimo e combinamos encontrarmo-nos perto do final. Estava quase.
Começamos a ir em direcção à zona da Universidade, numa parte do percurso que eu já conhecia, porque tinha feito por ali um treino na véspera. Entretanto, junta-se a nós a Célia Azenha, que me conta que estava a fazer a sua 59ª Maratona (sendo que vai fazer em breve a 60ª no Canadá). Ia ali um grupo de elite, sem dúvida!
Houve aqui um período muito grande em que fomos a caminhar, tendo feito praticamente toda a ligeira subida a andar... Lá convenço o Sr. Arlindo a corrermos até ao abastecimento dos 40km, que já não faltava quase nada e tínhamos de dar tudo nos últimos quilómetros. Quando entramos na recta que antecedia o abastecimento, e que era ligeiramente a subir, quem é que eu vejo lá ao fundo? O João Lima! Qual é que passa a ser o meu objectivo? Apanhar o João! "Vá, vamos lá, só mais um bocadinho!" O João ia lá bem longe e eu achei que, mesmo a correr, ia tão lenta que não o ia conseguir apanhar, mas ele abrandou no abastecimento, e eu consegui apanhá-lo pouco depois. Na verdade, gritei por ele e ele esperou por mim!
E começaram assim os últimos dois quilómetros. Eu só perguntava ao João se ele estava bem, porque para eu o ter conseguido apanhar era porque algo se passava... Ele dizia-me que não, não estava bem, mas de sorriso nos lábios (aquele sorriso de quem sabe que mais uma está feita!). Quem é que está bem aos 40km de uma Maratona? Que pergunta! O João ainda me disse para seguir algumas vezes, talvez porque eu estava a ser um bocado chata a puxar por ele (desculpa!)... Mas eu não lhe dei hipótese e disse-lhe que se tínhamos começado juntos, havíamos de acabar juntos.
Lá seguimos. Faltava tão pouco! Eu só queria chegar ao fim. Sentia-me leve. Tinha passado o meu Cabo das Tormentas, tinha batido no fundo, tinha chegado ao mais alto nível de desespero, e agora faltava tão pouco!
Apanhámos a Fabiana perto do final do quilómetro 41 (ou ela é que nos apanhou a nós?), e seguimos os três, naquelas centenas de metros finais, até à meta.
Quando entrámos na passadeira azul, a Aurora Cunha estava à nossa espera, para nos acompanhar até ao fim.
E foi assim que eu cortei a meta da Maratona da Europa. Com duas grandes referências e inspirações para mim. Melhor? Só se a minha Fabiana estivesse connosco. Mas há-de chegar a Maratona dela, e havemos de cortar a meta juntas!
Depois da meta, dei um abraço ao João, fui dar os parabéns ao Sr. Arlindo e à D. Helena, que me voltou a agradecer e me pediu para tirar uma fotografia comigo porque eu a tinha salvo! Eu só lhe dei água, juro! Mas numa Maratona um pequeno gesto pode mesmo fazer a diferença, não pode?...
Vi o louco mais louco do que eu (que morreu de tédio à minha espera - quem o manda correr depressa?), recebi a minha medalha e fui em busca dos ovos moles. Apenas e só para encontrar as já referidas caixas vazias... Fiquei de boca aberta, incrédula, a olhar para as mesas e as caixas onde outrora estiveram os ovos moles... Também já não havia maçãs. Havia porco no espeto, que é coisa que dispenso. E havia cerveja, menos mal.
Mais fotos, mais umas palavras trocadas. Eu nunca sei bem o que sentir, o que pensar. Acho que não estava bem a acreditar que tinha mesmo conseguido. Mas parece que sim.
Quis ir gravar o tempo na minha medalha (que é bem gira, por sinal!). E eis que me dizem que a tenda das gravações ia fechar para almoço e só voltavam às 14h30. Como assim!? Vão fechar? Lá fiz o meu choradinho, disse que tinha de me ir embora porque tinha um comboio para apanhar. Perguntaram-me o meu tempo. Achava eu que era suposto serem eles a dizerem-me o meu tempo... Pois que não. Disseram-me que visse no meu relógio quanto tempo tinha feito e era isso que eles gravavam. Disse-lhes três horas. Não acreditaram. Não percebo porquê!... Lá lhes disse: 5h12m45s. É isso que está na minha medalha. A diferença para o tempo oficial, que só vi depois, foi só de um segundo. Menos mal.
Últimas despedidas, últimas fotografias, e regresso ao apartamento.
Foi assim a minha Maratona da Europa. Hei-de escrever mais uns quantos posts sobre ela, claro, que isto é coisa que é preciso fazer render.
Por ora, deixo-vos com este testamento. Podia oferecer-vos uns ovos moles, em jeito de compensação pela leitura de tamanha obra mas olha, lessem mais depressa!
(as fotos deste post têm as mais diversas origens: Sofia, Facebook, fotógrafos oficiais, fotógrafos oficiais do João Lima [foi só por isso que eu quis correr ao lado dele!], etc. Se alguém quiser que eu elimine alguma das mesmas, é só dizer!)