sábado, 5 de outubro de 2019

De Chamonix V... - O dia do OCC...

E chegámos ao dia do OCC. Dia 29 de Agosto (dia curioso, já agora).

Acordámos cedo. Muito cedo. Mas podíamos ter acordado bem mais cedo se no dia em que chegámos a Argentière não tivéssemos visto isto:


Então o autocarro do OCC pára em Argentière às 5h45?! Então por que raio vamos nós apanhá-lo às 5h15 a Chamonix, tendo de sair de casa às 4h30?... Toca de enviar email para a organização, a dizer que não tínhamos percebido que havia essa possibilidade e que, por isso, tínhamos reservado lugar no autocarro que saía de Chamonix, pedindo (e implorando) que nos deixassem trocar. Claro que deixaram! E nós respirámos de alívio. E dormimos mais uma hora!

O autocarro que ia para Orsières (na Suíça, onde começava o OCC), parava mesmo em frente à nossa casa da Heidi. Mesmo. Não podia ser mais perfeito. Perto da hora lá fomos nós, e já estavam mais uns quantos loucos à espera do autocarro que nos ia levar a todos ao ponto de partida daquela pequena grande loucura.


A viagem, de quase uma hora, foi feita maioritariamente em silêncio, com algumas pessoas (em que talvez eu estivesse incluída) a tentar dormir um pouco. O dia ia ser longo, e a noite tinha sido curta. 

Chegámos a Orsières e já havia muita gente por toda a parte a fazer tempo para o início da prova. Uns a descansar na relva, outros nos últimos preparativos, mais alguns a fazer um reforço alimentar, e muitos na fila para a casa-de-banho, como é habitual antes de qualquer prova.


O ambiente era curioso. Não sei bem descrevê-lo mas era um misto de excitação, com nervosismo, com emoção. Aquela gente toda não se conhecia, mas ali era toda igual. Atletas e apoiantes, todos juntos, todos a partilhar aquele momento.



O início da prova era numa pequena praça, e lá nos conseguimos posicionar. Eu consegui ficar ao pé dele durante um bocado, mas acabei por me ir pôr junto à meta, para vê-lo partir. Última despedida. Últimas fotos. Uma emoção tremenda. Sabia que ele estava preparado e não duvidava que ele ia fazer uma grande prova. Mas sabia que ele não estava tão confiante como eu. Pudera. Ele é que ia correr!...



Às 8h15 foi dado o sinal de partida. Fiquei ali a ver aqueles 1605 atletas a começar a sua prova. A perseguir um sonho, um objectivo. Impossível ficar indiferente. 


O que os esperava!

Quando todos se foram embora, correndo em direcção às montanhas, e aquela pequena praça que minutos antes estava repleta de gente ficou vazia, também eu me senti estupidamente vazia. Ou cheia, não sei bem. Senti um aperto tremendo e só queria chorar. Estava na Suíça, sem dados no telemóvel, sem ter com quem falar. Ele tinha acabado de partir para a prova mais dura que algum dia fez e eu estava ali, a sentir-me perdida e desorientada, depois de uma descarga tremenda de adrenalina, sabendo que ainda ia passar muito tempo até ter notícias dele (sem dados na Suíça, tínhamos combinado que ele não me ia dizer nada nas primeiras horas e eu ia apenas seguir o acompanhamento ao vivo da prova...).

Andei ali meio perdida e fui em busca do autocarro que me ia levar ao primeiro ponto de passagem onde eu o poderia ver: Trient, ainda na Suíça, já nos 25km de prova. Aproveitei o Wi-Fi momentâneo e troquei algumas mensagens com quem, em Portugal, já estava a acompanhar a prova. Acabou-se o Wi-Fi e começou a viagem até Trient, que foi relativamente rápida.

Cheguei a Trient ainda não eram 9h30 e sabia que ele devia chegar por volta das 12h50, mas ia depender muito de como a prova corresse até aí. Na véspera ele tinha-me dado um Excel que tinha feito, onde tinha posto o tempo estimado de passagem em cada ponto, em função do ritmo que ele previa fazer, para eu me ir guiando e saber mais ou menos o que esperar. 



Ao chegar a Trient, mais uma vez, confirmei que a malta do UTMB não brinca. Havia uma tenda gigante montada para os apoiantes, com mesas e bancos corridos, com um bar com comida e bebida, com uma televisão que ia passando vídeos em directo e informação da prova, com tomadas e... Wi-Fi gratuito! Voltei a estar em contacto com o mundo e comecei a preparar-me para as horas de espera que tinha pela frente. 



Felizmente, fiz rapidamente uma amiga: uma porto-riquenha que vive na Califórnia, e que estava ali a acompanhar a filha. Acabou por ser bom ter companhia, fomos falando e trocando experiências, e o tempo foi passando. Não faltava animação por ali, incluindo um grupo de miúdos de uma escola, e respectiva professora, que tinham muitos e variados instrumentos e faziam toda uma festa!


Através do site do UTMB e da app da prova consegui ver que ele passou em Champex-Lac (o primeiro ponto de controlo) abaixo do tempo previsto, e em La Giète a mesma coisa, apesar de ter perdido algumas posições na subida. A primeira grande subida estava feita, e só faltavam mais duas. Acabou por me aparecer em Trient bem mais cedo do que era suposto, o que me levou a recear que estivesse a ir depressa demais, e que depois iria pagar essa factura...

[Ainda o tentei convencer a escrever ele o relato da prova, mas ele não quer, portanto o máximo que posso fazer é tentar descrever o que ele me foi transmitindo.]

Ele chegou a Trient animado, mas preocupado com o estômago que não estava a colaborar. Sentia-se com o estômago pesado e cheio, e a coisa não estava fácil... Claro que eu fiquei preocupada e a pensar no que viria aí... Mas, felizmente, ele fez uma nova melhor amiga: a água com gás. Tornou-se um pequeno vício, a que ele não disse que não em todos os abastecimentos daí em diante. 


Naturalmente, os acompanhantes não podiam entrar dentro da tenda do abastecimento, mas ainda trocámos umas palavras (e uns beijos!) antes e depois, tirei-lhe umas fotos e despedimo-nos. Estava quase metade da prova feita, ainda que ainda faltassem muitos e longos quilómetros... Acima de tudo, fiquei mais tranquila, porque aquela coisa de estar mais de 4 horas sem saber dele, a tentar adivinhar como a prova estaria a correr, não era para mim... 

Lá foi ele em direcção à segunda grande subida (até aos 2100 metros), e lá fui eu apanhar outro autocarro, em direcção a Vallorcine, onde terminava a grande descida depois da grande subida.

Mais uma vez, tudo super bem organizado, imenso apoio na rua, uma verdadeira festa! Aí já estávamos em França, e já foi mais fácil para mim comunicar com o Mundo e partilhar novidades. Foi muito bom sentir que havia tanta gente a torcer por ele, a acompanhar a prova e a mandar-me mensagens. Sempre que estive com ele, tentei dizer-lhe isso mesmo, para lhe passar algum ânimo (não que ele precisasse).

Fui acompanhando na app, e vi que, mais uma vez, ele perdeu imensas posições na subida... Estava com medo que o estômago tivesse voltado a fazer das suas, ou que ele estivesse a rebentar (estava sol e bastante calor). Mas a verdade é que ele chegou a Vallorcine dez minutos mais cedo do que o planeado, e vinha super animado e bem-disposto. A prova estava a correr bem, apesar de muito dura, e ele estava a adorar.

Eu juro que aqueles 5 minutos em que estive com ele de cada vez, valiam bem pelas horas de espera, só por o ver tão animado! Isso e pelos chocolates que ele andou a roubar dos abastecimentos para me trazer... Quem é que se lembra de tal coisa!? O louco...


E lá foi ele outra vez...

Sempre que ele se ia embora, eu ficava meio tonta, com aquele sorriso parvo de quem está a partilhar uma coisa tão feliz e especial, ao mesmo tempo que sente um orgulho tremendo...

O próximo abastecimento seria em Argentière, já com 44km de prova, e muito perto da nossa casa da Heidi.

A dada altura começou a chover... A chover bastante... Aqueles pingos gordos que chateiam... E eu preocupada com ele, lá no meio da montanha, já com 40km em cima, e ainda a levar com chuva...

Mas não sei o que é que lhe deu, que o homem ganhou fogo nos pés e começou a despachar-se pela montanha fora! Entre Les Tseppes (quase no topo da subida grande) e Argentière, ele ganhou 150 posições! E eu tola, a ver aquilo... A achar que ele tinha ensandecido ainda mais. Não é que ele ligue alguma coisa a isso... Ele é um corredor de meio da tabela. Às vezes, melhor, às vezes, pior. Mas a verdade é que os problemas de estômago tinham ficado para trás, ele estava super entusiasmado e a sentir-se bem. Só me contava que as subidas estavam a correr muito melhor do que esperava, e que aquilo era espectacular.


Argentière já estava. Faltava a última grande subida até La Flégère, e depois era sempre a descer até Chamonix. Faltavam 12 quilómetros! Para o bom e para o mau, a última grande subida coincidia em boa parte com o trilho que tínhamos feito no Domingo, que saía de Argentière a subir. Acho que psicologicamente o ajudou, sobretudo nesta fase, já saber o que aí vinha, já conhecer o percurso, o tipo de terreno e o que o esperava. Despedi-me dele mesmo no sítio onde começava o trilho que tínhamos feito, com um "Vemo-nos em Chamonix! Até já!".

Entretanto, ainda fui à casa da Heidi, porque nessa manhã tinha descoberto que o chuveiro estava avariado... Ora, o homem ia chegar do OCC e a última coisa que eu queria era que ele ficasse sem tomar banho!... Já imaginaram o que seria?!... Pois que lá consegui que fossem lá trocar as torneiras da banheira, e só olhava para o relógio e dizia ao coitado do rapaz que estava a fazer a reparação que tinha de me despachar, que tinha de ir para a meta em Chamonix! Num dia cabe mesmo muita coisa, certo?...

Chuveiro operacional, e lá vou eu em direcção a Chamonix.

O ambiente estava incrível! As ruas cheias de gente, uma festa imensa, barulho por toda a parte... É impossível ficar indiferente ao que se vê ali e às emoções no rosto de cada atleta que corta aquela meta... Tal como em todos os abastecimentos, fiz sempre uma festa enorme sempre que vi um português. Não eram muitos, mas eram bons (tivemos um 7º lugar e tudo!).


Eram 18h28 quando ele cortou a meta. Quase 40 minutos mais cedo que a previsão que ele mesmo tinha feito inicialmente. Fez uma segunda metade da prova absolutamente incrível, sempre a ganhar posições, sempre num bom ritmo e, acima de tudo, a sentir-se bem. Que orgulho, caramba! Foi o 629º atleta a cortar a meta, de 1474 finishers. Um resultado muito melhor do que ele esperava. Mas dentro daquilo que eu esperava, porque sabia bem o que ele tinha treinado...

Gostava mesmo que fosse ele a contar como lhe correu a prova, mas vão ter de se contentar com a minha versão.

E o que eu posso dizer é que foi um dia incrível, de mil e uma emoções, em que não parei um minuto, porque andei sempre de um lado para o outro, e quando estava em algum lado à espera dele, aproveitava sempre para mais uns aplausos, mais umas palavras de incentivo. Não foi, de todo, um dia chato ou de tédio... Foi um privilégio fazer parte de algo assim, e nem imagino o que seja um CCC ou um UTMB... A sério. Foi um dia mesmo muito emotivo, e que nunca esquecerei. Não só pelo que representou para ele, em termos de superação e de objectivo alcançado, mas por tudo o que vi e vivi.

Próximo passo... CCC? Pode ser que sim!

12 comentários:

  1. Pode não ter sido ele a escrever mas o relato está emocionante!
    Ri-me com a frase "Mas sabia que ele não estava tão confiante como eu. Pudera. Ele é que ia correr!..." É sempre assim... :)
    Conheço essa sensação de ver uma partida e de repente sentir o vazio. É estranho...
    Na altura dei os parabéns mas nunca é demais repetir a congratulação pela grande prova que o louco mais louco que tu fez! :)
    Em tudo o que dizes, tu e todos os que vão ao UTMB, sobre a organização e ambiente, entende-se perfeitamente porque é essa prova a rainha dos trails!
    Por último, quero realçar uma encantadora frase que escreveste e que não necessita de mais comentários: "e pelos chocolates que ele andou a roubar dos abastecimentos para me trazer..." :)
    Beijinhos e obrigado por partilhares connosco estas fantásticas recordações!

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    1. Por mais que nós treinemos, quando alinhamos na meta de uma prova, surgem sempre mil e uma dúvidas :)

      Foste uma das pessoas a quem eu só posso agradecer pelo apoio antes, durante e depois! Obrigada!

      Eu não tenho termo de comparação com outras provas de trail no estrangeiro, mas nesta achei tudo absolutamente irrepreensível!

      :)

      Um beijinho!

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  2. Éh páhhh … tou tipo Bonga :) … parabéns pela relato .. consigo sentir tão bem essas emoções, as dele e as tuas … por um lado porque o consegues transmitir muito bem com o teu texto, por outro porque já lá estive por dentro e há pouco tempo estive na posição de roadie a viver algo idêntico por fora … parabéns ao "louco" e parabéns a ti :) … não consegues imaginar um CCC ou um UTMB? É a mesma coisa, as mesmas sensações que aqui tão bem descreves, só um bocadinho mais longo :)
    Beijinhos para ti e um grande abraço ao "louco"

    P.S. Tou com "imbeja" … não tou nada, tou é com saudades daquilo

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    1. É estranho ser roadie, não é? A malta acha que é fácil, mas não é! É toda uma gestão de logística, de emoções, de tentar adivinhar como está a correr a prova... Uma canseira! :D

      Não sei se o meu coração aguenta um CCC, mas vamos ver...

      E olha, bem te entendo! Eu vim de lá há pouco mais de um mês e já ia outra vez!

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  3. "Isso e pelos chocolates que ele andou a roubar dos abastecimentos para me trazer" e é isto!

    Fantástico, mesmo.

    Gostei muito de ler, pode não ter sido ele a escrever mas fizeste um excelente trabalho.

    Parabéns pelo esforço de ambos, sim, que isso d estar do lado de fora não deve ser nada fácil!

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    1. Assim vale a pena ser roadie :)

      E eu gostei de escrever! Acho que vamos sempre querer voltar a estas memórias um dia :)

      Obrigada!

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  4. Eu senti a emoção... Parabéns e que querido levar chocolates para ti :D

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  5. Conseguiste transmitir muito bem as tuas sensações e também as dele.
    Que aventura brutal recheada de tantas emoções!
    Estão ambos de parabéns, tu pelo fantástico relato e ele pela fantástica prova.

    Beijinhos e força para os teus treinos!

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    1. Acho que se fosse ele seria diferente, mas já dá para terem uma ideia :)

      Obrigada e muita força para vocês também :)

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