A vida. A vida cansa-me.
E a morte. A puta da morte. A morte que não pára. Tenho-me lembrado muito do Saramago e das suas Intermitências da Morte. Pudesse eu escolher, e a Morte teria estado intermitente nestes últimos dias. "No dia seguinte ninguém morreu." E ninguém morria. Ou, em não podendo ser assim, nenhuma das minhas pessoas morria. Já era suficiente.
A semana passada, no dia seguinte ao funeral da minha mãe, enquanto eu apanhava e dobrava meias, ainda de robe e sem ter tomado banho, numa cena completamente banal, dei comigo a pensar que da última vez que tinha tido uma viagem marcada a Madrid, a vida me tinha trocado as voltas e eu tinha acabado por não ir. Estava eu nestes pensamentos, a pensar que desta é que era, desta eu ia mesmo, quando o telefone toca. Era o meu pai. Do outro lado, a má notícia. Quando eu achava que não aguentava mais más notícias, a vida achou o contrário.
A mãe da minha boadrasta, a minha avó-emprestada, aquela que entrou na minha vida há quase 18 anos, tinha tido um AVC. Eu não me lembro ao certo mas acho que me sentei e fiquei sem reacção. Desliguei o telefone e fiquei muito tempo sem saber o que fazer. Vesti-me para ir correr. Tinha uma maratona daí a 3 dias, já tinha falhado o treino da véspera por causa do funeral da minha mãe e achei que me fazia bem ir espairecer. O meu irmão ligou-me a perguntar se queria ir com ele para Abrantes para o hospital. Eu disse-lhe que ia correr, que ia lá ter mais tarde. Saí de casa, entrei no carro, liguei a quem me pudesse dar alguma da razão que eu não tinha naquele momento, e percebi que ir correr era estúpido. Só estúpido. Naquele momento, eu não sabia se ia a Madrid. Naquele momento, eu não sabia nada. Naquele momento, eu senti-me perdida e desorientada como em poucas vezes na minha vida. Voltei para casa, tomei banho e esperei pelo meu irmão. Fomos para Abrantes.
E em Abrantes eu soube que a minha avó-emprestada não ia voltar para nós. A avó-emprestada que sempre foi avó por inteiro. Que não fazia distinções entre os 5 netos. Os de sangue e os de coração. Éramos todos netos. Éramos todos iguais. O que dava a um, dava a todos. Na sua simplicidade, na sua humildade. Na sua forma tão própria de ser, com as suas caretas, com a sua refilice, com a sua dificuldade em demonstrar afectos (algo que é transversal a toda esta família, diga-se).
Em Abrantes eu despedi-me dela. Despedi-me sabendo que podia não a voltar a ver. Despedi-me sem conseguir decidir se ia a Madrid. Despedi-me de coração apertado e frustrada com a impotência perante esta arbitrariedade da vida. E da morte. Sobretudo, da morte.
Fui para Madrid. Fui para Madrid sabendo que podia ter de voltar a qualquer momento. Mas fui para Madrid porque sei que era o que ela quereria. Fui para Madrid, levando-a a ela e a toda a família comigo. Fui para Madrid por mim e por nós.
E voltei. Voltei para assistir aos últimos dias de um definhar lento. Um definhar irreversível. Um limbo terrível de sentimentos contraditórios e desesperantes. A dificuldade em aceitar o fim, sentindo simultaneamente que o fim era o melhor porque esse limbo era um sufoco para ela e para quem estava à volta. Esse limbo terminou ontem.
O funeral foi hoje. E não. Não é por irmos a dois funerais em duas semanas que as coisas ficam mais fáceis. Sobretudo, quando ainda não parámos para chorar o primeiro. Sobretudo, quando temos andado a fugir de processar tudo o que aconteceu. Sobretudo, quando perdemos alguém de quem gostamos tanto sem que fosse preciso existirem laços de sangue a unir-nos, por oposição a termos perdido alguém que nos deu o sangue que nos corre nas veias mas que pouco ou nada nos diz. Esta contradição, estes opostos, estes sentimentos confusos, esta raiva perante a injustiça, este não saber o que sentir, dizer ou fazer.
Se eu pudesse escolher, a escolha era fácil.
"No dia seguinte ninguém morreu."