Domingo de manhã.
Levanto-me, ponho a chaleira ao lume, preparo um chá verde. Sento-me na
poltrona, acendo um cigarro, ponho o portátil ao colo e escolho a banda sonora
para o meu dia.
Acordei com
vontade de escrever. Queria escrever uma carta. Uma carta a despejar todo o fel
que sinto. Uma carta que sei que não iria enviar. Porque não seria justo.
Lembro-me que a nossa necessidade de dizer coisas não deve nunca ser sobreposta
às necessidades dos outros. A nossa necessidade de despejar rancores e
frustrações, não deve ser transformada em maldade e egoísmo.
O que não é o
mesmo que dizer que não devemos despejar esse fel. Escrever as nossas cartas.
Gritar ao vento o que nos consome. Mas pode ficar só para nós.
A terapia
ensinou-me que não podemos fingir que as coisas não aconteceram. A metáfora do
armário, que tanto me irritava nas sessões de terapia, é, afinal, bem real.
Todos nós temos o
nosso armário no sótão. Onde escondemos os nossos segredos, onde acumulamos a
nossa tralha, onde enfiamos a nossa bagagem. E ela fica lá escondida, que fica,
mas não desaparece. E vamos pondo mais, e mais, e mais, e um dia o armário
rebenta. Ficam ali as portas escancaradas, com a nossa tralha a cair das
prateleiras, com a nossa tralha espalhada no chão. E, aí, somos obrigados a
pegar na tralha, a pegar nas coisas uma a uma, e a arrumá-las. E o problema é
que se formos acumulando e acumulando e acumulando, o armário pode explodir na
altura menos conveniente (e ele tem tendência a isso, a escolher os momentos
menos próprios para explodir).
Não vale a pena
fingir que as coisas não aconteceram. Não vale a pena esconder debaixo do
tapete o que nos magoa e fingir que não se passa nada.
Dói, custa, mas é
preciso mexer e remexer, e deixar tudo bem arrumado, numa gaveta perto de nós,
e não no armário no sótão.
E é por isso que
eu escrevo. É uma espécie de catarse. É uma forma de me obrigar a pensar sobre
as coisas para, no fim, conseguir aceitá-las e compreendê-las.
Lidarmos com os
nossos fantasmas é uma forma de nos prepararmos para o futuro. Por um lado,
porque vamos mantendo o nosso armário arrumado. Por outro, porque ao aceitarmos
o que acontece agora, torna-se mais fácil aceitar o que acontecer no futuro ou,
em alguns casos, podemos mesmo evitar que se repita no futuro (dentro daquilo
que é a nossa limitada capacidade de controlar o futuro).
A melhor forma de
lidarmos com o que nos acontece, é aceitar que aconteceu. Fingir que não se
passa nada, é apenas um penso rápido, numa ferida que todos os dias vai crescer
mais, e mais, e mais. Até se espalhar por todo o nosso ser e destruir aquilo
que somos. Não vale a pena, pois não?
Vou só ali
escrever uma carta. Para depois poder esquecer.