As palavras que escrevi no Domingo foram escritas a quente, ainda sob o efeito de todas as hormonas baralhadas que percorriam o meu corpo.
Agora, que passaram dois dias, não quero deixar de registar um pouco mais sobre aquele dia e os que o antecederam.
Nos dias antes da meia, e como deu para perceber, o meu estado de espírito não era o melhor. Estava preocupada, com medo, insegura. Pesava-me a consciência porque sabia que não tinha treinado o suficiente. Devia ter feito dois treinos longos, de 17km, e não fiz nenhum. O máximo que corri foram 15,5km nas Lezírias. E, obviamente, isso deixava-me com sérias dúvidas: seria capaz de correr mais 5,5km do que alguma vez tinha feito na vida?
Dois ou três dias antes, tive mais cuidado com a alimentação e aumentei a ingestão de hidratos e de proteínas, bem como de ainda mais água. Na véspera, jantei o que era suposto e deitei-me cedo. Acordei às seis da manhã e não consegui dormir mais. Estive até às sete e meia a dar voltas na cama e acabei por desistir e levantar-me, para tomar o pequeno-almoço, vestir-me e seguir para o Areeiro. Fui com o meu pai, o único que convenci a alinhar nisto comigo. Na verdade, foi em parte graças a ele que comecei a correr, pelo que seria justo ser ele arrastado quando eu meti na cabeça que queria fazer a meia.
E lá fomos. Estava nervosa. Continuava insegura. Quanto mais nos aproximávamos (e foi um processo duro e longo, devo dizer), mais ansiosa eu estava. Muitas vezes me perguntei o que é que eu estava ali a fazer.
E, de repente, a prova começou. Despedi-me do meu pai, pus os phones, e lá fui eu. O princípio foi muito caótico. Ainda estava muita gente concentrada. Por razões que me ultrapassam, a meio do tabuleiro, já havia gente parada e a caminhar. Eu lá tentei manter-me no meu ritmo, e fui durante muito tempo nas faixas centrais, a ver o rio lá em baixo. Vertigens e medo? Zero! A adrenalina está ao rubro e não há tempo para pensar nisso. A nossa cidade é linda e eu só queria aproveitar a vista e o momento.
Os primeiros kms correram lindamente, a tentar encontrar o meu ritmo, e a resistir à tentação de ir mais depressa do que era suposto. Sabia que para aguentar os 21kms tinha de dosear bem o esforço, e foi difícil obrigar-me a abrandar ao princípio. Quando corremos no meio de tanta gente, facilmente nos deixamos contagiar pelo ritmo de quem vai à nossa volta, que nem sempre é o nosso.
Lembrei-me agora que podia não estar aqui agora a escrever isto... Eu sou aquela pessoa a modos que distraída que depois do abastecimento de Alcântara, estava tão preocupada em deitar a garrafa de água fora nos contentores apropriados, que de repente, olha para cima e percebe que há uma divisão nos caminhos: meia-maratona para a esquerda, mini-maratona para a direita. E eu estava na faixa mais à direita, claro. Toca de atravessar as faixas todas para a esquerda, em dez metros, com a forte probabilidade de algumas pessoas me terem insultado mentalmente. Não quero sequer imaginar o que seria não me tivesse apercebido a tempo!...
Mas lá continuei e ao fim de 7kms lá atinei com o meu ritmo. Os postos de abastecimento eram muitos e acho que isso também ajuda a termos uma maior sensação de progressão. Ao chegar ao Cais do Sodré estavam umas raparigas com um cartaz genial: tinha um desenho de um daqueles cogumelos do Super Mario e dizia qualquer coisa como "Tap here to boost power". E eu fui lá tocar, claro! São estas coisas tontas que ajudam a manter o espírito animado e um sorriso parvo na cara!
Também nesta altura, percebi que tinha uma bolha no pé esquerdo. O meu pensamento foi qualquer coisa como: paciência, aguenta-te! Até aos 15,5km, de cada vez que me doía alguma coisa, a minha conversa com o meu corpo era: já correste 15,5km uma vez e aguentaste, por isso, nada de queixinhas até lá! Sim, eu tive muitos e variados diálogos geniais comigo mesma. É incrível o que a nossa mente divaga durante 21kms! Isso e dar comigo a cantarolar certas músicas!... Tanta gente que deve ter achado que eu era maluquinha!... Mas é o que dá ir sozinha. Tenho de me entreter e manter o espírito em alta!
Outro dos meus momentos brilhantes foi ir a passar junto ao Centro de Congressos e pensar "boa, já estou quase em Alcântara, depois é logo Belém". E, de repente, olho para trás e vejo a ponte lá no alto e sinto uma alegria gigante: "nãoooo! Tu já passaste Alcântara! Belém é já ali!!!". Deve haver alguma explicação científica para isto. Claramente que o sangue não pode chegar ao cérebro e às pernas ao mesmo tempo!...
Um dos momentos que eu mais temia era mesmo a passagem por Belém (onde estava a meta) aos 13kms. Porque nesta fase já haveria muita gente a vir em sentido contrário e a terminar a prova, e a mim ainda me faltava ir ao Dafundo e voltar (mais 8kms, leia-se). Não foi tão mau quanto pensei. Se, por um lado, me custou pensar no que ainda me faltava, por outro, deu-me alguma energia olhar para os que estavam a terminar a caminhada e a mini e pensar "fraquinhos!" (sim, também me deu para a pequenez de espírito - foi toda uma viagem pelo fundo do meu ser).
Passou Belém, dois terços do percurso estavam feitos, eu continuava super estável no meu ritmo, e estava fresca e fofa. A partir dos 15/16kms comecei a fraquejar. Começou a doer-me o joelho esquerdo e eu só pensava que nunca na vida tinha tido dores nos joelhos. Não podia ser. Mais uma vez, disse ao corpo que parasse de se queixar. Esta fase foi também difícil porque depois da passagem por Algés, parecia que o ponto de retorno nunca mais chegava e só me parecia que corria, corria, e nada. Por esta altura, havia um abastecimento com laranjas que me souberam pela vida, e ainda me cruzei com o meu pai (que ia super lançado em sentido contrário). Mais um boost, se não de power, de entusiasmo, e uma sensação óptima quando, finalmente, dei a volta em direcção a Belém.
Foi nesta fase, a cerca de 3kms do fim, que decidi acelerar para queimar os últimos cartuchos de energia, e tentar melhorar o tempo. Sentia-me bem, não demasiado cansada, a respirar bem, e deu-me um gozo enorme ir a ultrapassar imensa gente neste momento da prova.
E cheguei à meta. Cheguei à meta inteira, a sentir-me bem, estupidamente feliz e orgulhosa de mim mesma. Mais uma vez, fui capaz de ultrapassar os medos, as inseguranças. Fui capaz de me ultrapassar a mim mesma. Porque, mesmo a correr com 10300 pessoas, eu só estava a competir comigo mesma. Eu só queria superar-me a mim mesma. E, mesmo não tendo feito o tempo que queria, fiz um tempo bem melhor do que aquele para o qual andei a treinar. E esta sensação é inexplicável.
Correr pode ser uma moda. Pode ser o que lhe quiserem chamar. Sim. Mas, para mim, correr é a minha forma de ser mais e melhor. Se não o conseguir fazer em mais área nenhuma na minha vida, que o faça na corrida!
Fazer uma meia-maratona (ou qualquer prova longa) é fazer uma viagem por nós mesmos. É preparar o físico durante semanas (meses), é ter a disciplina de ir treinar 3/4 vezes por semana, é sair de casa de noite e com frio, é ter cuidado com a alimentação, é ultrapassar lesões e dores, é insistir, é não desistir. É preparar também a mente, parte igualmente importante no processo, que nos permite manter o foco no objectivo e continuar a persegui-lo. Todo este processo é uma lição de vida, que nos ensina muito, sobretudo sobre nós mesmos. E, por isso também, a sensação que se tem quando se atinge o objectivo é maravilhosa. E pode servir de inspiração para tudo na nossa vida: quando temos um objectivo definido, quando nos preparamos para ele, quando não baixamos os braços e lutamos, nós conseguimos!...
E se alguém teve paciência para ler tudo isto até ao fim, fique sabendo que terá sido bem mais difícil do que correr uma meia-maratona!
E venha a da Vasco da Gama!