quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Do parto da Isabel...

O parto da Isabel não foi nada do que eu queria, sonhara ou idealizara. Em parte, já sabia que assim seria, desde que ficou decidido que seria cesariana. Mas, ainda assim, foi muito diferente do que esperava.

Não consigo dizer que foi o momento mais bonito da minha vida. Se bem que também não consigo dizer qual foi o momento mais bonito da minha vida. O problema está em mim, certamente. 

Quando penso no nascimento de um bebé, no acto de trazer um novo ser humano a este mundo, penso em algo muito carnal, muito animal, muito natural. Penso no regresso aos nossos instintos mais básicos e ao que faz de nós aquilo que somos. Penso na vida a gerar vida. Penso no milagre da natureza. 

Ora, numa cesariana não há nada disso. Uma cesariana é um procedimento cirúrgico. Numa cesariana não há nada de animal, de instinto, de vida a gerar vida. Numa cesariana há alguém inerte deitado numa mesa de operações, há muitos e variados profissionais de saúde em redor, há uma barriga que é cortada e de onde é extraído, contra a sua vontade, um pequeno ser. Não consigo ver grande beleza nisto. O problema está em mim, certamente. 

Achei o procedimento frio. Senti-me meio perdida naquele bloco operatório, até o Pai se ter juntado a mim. Foram minutos que pareceram horas. Tive medo. Senti-me ansiosa. Achei que tudo podia correr mal. Senti-me impotente e inútil, incapaz de trazer a minha filha ao mundo. 

Foi estranho sentir tudo. Sentir o frio do desinfectante a ser esfregado na minha barriga. Não senti o corte, mas senti a pele a ser afastada, a barriga como que esventrada, os movimentos dentro de mim, tudo demasiado real. Sem dor, mas sentindo perfeitamente o que se passava. Foi rápido. Muito rápido. 

Em poucos minutos, o choro da nossa filha. Da nossa Isabel. Nesse momento, já tinham baixado o campo cirúrgico e o Pai pode vê-la vir ao mundo. Eu, só podia ouvi-la. E que bem que ela se fez ouvir! Guardo na memória aqueles primeiros gritos. Vi, depois, as primeiras imagens que o Pai fez questão de captar. A nossa filha no mundo, gritando desalmadamente, mostrando a garra que traz consigo.

Quando ma mostraram, não pude não chorar. No meio de toda aquela estranheza, as lágrimas caíram, ao ver a nossa filha pela primeira vez. Era real. Ela estava ali, junto a nós, a iniciar a sua longa jornada, nesta viagem que é a vida. E nós, ali, a iniciar a nossa longa jornada, nesta viagem que é a parentalidade. 

Senti-me assoberbada por tudo. Custou-me não poder reagir, não lhe poder pegar, mal a conseguir ver. Parecia tudo demasiado surreal e eu continuava a sentir-me mais num procedimento cirúrgico do que naquele que se queria que fosse o momento mais bonito da minha vida. 

Eventualmente, levaram-na. E ele foi com ela. E eu fiquei ali, sozinha e perdida, no meio de estranhos, a ser suturada. Acho que só quando cheguei ao recobro e os reencontrei aos dois, é que respirei de alívio e me caiu a ficha. Só quando ficámos ali os três, em namoro completo, com ela junto a mim, comigo a querer examinar cada centímetro do corpo dela mas sem me conseguir mexer, é que eu percebi o que estava a acontecer. 

Eventualmente, ficámos só as duas. A conhecer-nos. A reconhecer-nos. A cheirarmo-nos mutuamente. A ver ao vivo o que imaginámos durante meses a fio. Não sei quanto a ela, mas eu, o que senti, é que era tudo infinitamente melhor do que eu poderia ter imaginado. 

O parto da Isabel não foi uma experiência bonita, ou memorável, ou o melhor momento da minha vida. Mas o que é que isso importa, com tudo o que virá depois?... 



[Texto escrito a 9 de Julho, duas semanas depois de a Isabel nascer. Não o publiquei na altura, por ter sido escrito a quente. Mas, hoje, o sentimento não melhorou. Sobretudo, porque tenho agora a certeza de que fui sujeita a uma cesariana desnecessariamente. Talvez um dia eu ultrapasse isto. Talvez eu tenha outro filho e o parto que idealizei. Ou talvez não. Mas teremos sempre a terapia, não é verdade? Foquemo-nos na última frase e em tudo o que já veio e o que ainda está para vir.]

10 comentários:

  1. Compreendemos o que dizes. No nosso caso, os nossos dois tiveram que ser mesmo de cesariana. Mas como já foi há muito tempo, 35 e 27 anos, as coisas eram diferentes pois na altura o pai não se podia juntar por ser uma operação. Tive que ficar a sofrer cá fora. E uma frustração da Mafalda foi não ter visto a filha nascer, mas nele já foi diferente pois nessa altura já se podia fazer com epidural. Não é o que se deseja mas é o que foi possível. E bastas vezes o bom é inimigo do óptimo...
    Mas se o nascimento não foi o momento sonhado, talvez não imaginasses que irias ter uma bebé tão simpática :)
    Beijinhos e tudo de bom

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    1. Obrigada pela tua partilha, João! Sim, felizmente as coisas já mudaram um pouco, e o pai já pode estar presente. Imagino o teu estado de nervos cá fora, e o da Mafalda, sozinha lá dentro. Ainda bem que as coisas mudam! Acredito que, ao fim destes anos todos, já nem pensem nisso :)

      Um beijinho

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  2. Compreendo o que escreves... e a verdade é que muitas vezes prendemo-nos a pequenos momentos que não passam disso: pequenos momentos. O mais importante é que tens contigo a tua filha saudável e linda! Uma filha que já te deu 7 meses de momentos maiores cheios de felicidade.
    Escrever é fácil (e eu sei que provavelmente faria uma análise semelhante à tua) mas eu diria que estes 7 meses já suplantam o pequeno momento. ;)

    Beijos aos 3!

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    1. Acho que ainda vai demorar, até eu ultrapassar isto. Talvez tenhas razão, e eu esteja só presa a um pequeno momento. Mas não consegui, ainda, deixar ir...

      Um beijinho!

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  3. Toda a minha vida que antecedeu o nascimento da minha filha mais velha, imaginei como seira dar à luz. Achava, também eu, que iria ser o momento mais extraordinário da minha vida. Queria um parto natural, sem epidural (afinal, dois anos antes, tinha assistido ao nascimento dessa forma do meu afilhado, e foi uma coisa rápida e fantástica). Foi tudo absolutamente diferente! Fiz o trabalho de parto, mas a perda de capacidade respiratória da minha filhota empurrou-me para uma cesariana de urgência. Sem pai ao pé de mim e com o terrível medo que a falta de oxigénio a tivesse afectado. Felizmente não afectou e eu fiquei sempre a semptir-me menos competente por não a ter conseguido por no mundo da forma mais natural. Projectei as ambições para o filho seguinte. Só que engravidei pouco tempo depois e na data prevista para o parto da segunda ainda não tinha decorrido o tempo para poder fazer um parto natural em segurança e fui novamente empurrada para uma cesariana. Esta sim, programada e muito fria. Durante anos pensava nisso e sentia que tinha perdido alguma coisa que faria de mim mais mãe. Idiotice, claro. Hoje, olho para trás e penso que não podia ter sido de outra forma. E já não me apoquento com isso.

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    1. Obrigada pela tua partilha e parabéns pela forma como conseguiste ultrapassar isso. É sinal que há esperança para mim :) Acho que, como em tudo na maternidade, o problema são as nossas expectativas e as mil e uma coisas que idealizamos... Aos poucos, vamos levando banhos de realidade e percebendo que a vida não é feita a regra e esquadro :)

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  4. Uma cesariana não é bonito mas uma cesariana humanizada em que não ta levam, em que em vez de a arrancarem pressionam levemente para ela ir saindo, em que tu podes ver tudo e pegar nela e ficar com ela pode ser menos frio...
    Eu, por escolha, se a miúda não decidir vir antes, vou fazer uma cesariana humanizada, depois conto as diferenças (a da Bia não foi humanizada) ;) mas temos uma excelente fotografia dela de pés de fora e ainda com o resto lá dentro e eu sei que pode soar parvo mas acho mesmo uma fotografia bonita (tirada pela enfermeira acompanhante dos pais que será a enfermeira de dia da família, a Sharona)

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  5. O Gonçalo também nasceu de cesariana, com o pai fora da sala porque, enfim, hospital público, e ele também não estava muito convencido com a ideia, pelo que achei que foi pelo melhor assim. Não pude tirá-lo de mim, a médica era fria e desligada, mas tive a melhor anestesista de todos os tempos e enfermeiras maravilhosas que me acompanharam. Levava já mais de 30 horas de espera e o trabalho de parto pura e simplesmente não avançava. Eu já sabia que poderia ser assim, tinha sido assim com a minha mãe, e talvez por isso encarei tudo isto com naturalidade. Ainda assim claro que adoraria ter um parto natural e talvez dedicar-me mais a conhecer outras maneiras e ter um acompanhamento diferente. No entanto, enquanto mo tiravam da barriga, o pesaram e o ouvia a chorar, a anestesista descrevia-o e eu suspirava de ansiedade. Fizémos contacto pele a pele e foi maravilhoso vê-lo a sossegar assim que ouviu a minha voz, foi dos momentos mais mágicos da minha vida. E ficou sempre comigo, o que foi bom.
    Mas depois houve muita coisa a acelerar e a correr mal, com o miúdo a ter de ir para a incubadora e eu a ter um baby blues violentíssimo (depressão pós parto não diagnosticada, maybe?) e toda a luta pela amamentação de que já falei. Os antecedentes que tinha ajudaram-me a lidar com o parto, mas confesso que quando sei de alguém a dar à luz de parto natural fico com um aperto no coração de "também gostava". E quando alguém também fez cesariana não me sinto tão sozinha. No fundo todas as formas são válidas, eles estão cá e saudáveis e felizes e é o que interessa.
    Estamos juntas, Inês.

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    1. Muito, muito obrigada, Joana! Lembro-me de ir acompanhando os teus posts, quando o Gonçalo nasceu e, não sei se já te disse isto entretanto, mas lembro-me muitas vezes de ti, quando as coisas estão mais difíceis. Sempre partilhaste o bom e o mau, e ajuda mesmo saber que não estamos sozinhas. Acho que, com o tempo, aprenderemos a aceitar aquilo que vivemos e a não sentir esse aperto no coração. É como dizes: eles estão cá e são saudáveis. Foquemo-nos nisso!

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