domingo, 13 de maio de 2018

Da Maratona de Madrid... - V

E foi assim que eu entrei na segunda fase da prova, para mim. Se a primeira correu bem melhor do que esperava, e me sentia relativamente tranquila e confiante, a partir daqui, tudo mudou.

Tinha definido como objectivo a meta de fazer os primeiros 25km sem parar de correr. Os meus dois treinos mais longos tinham sido, precisamente, de 25km. Entretanto, lembrei-me que nenhum deles tinha sido inteiramente a correr (o último tinha sido uma miséria e no primeiro tinha caminhado 200 metros numa subida pavorosa), pelo que, na verdade, a distância máxima que eu tinha feito a correr era a de uma meia-maratona. Ainda assim, depois de fazer os 25km, não quis ficar por aí. Quis tentar os 26, depois os 27, depois os 28. Foi por pura casmurrice que quis chegar aos 30km sem parar de correr. E cheguei. Porque precisava de provar a mim mesma que era capaz. E fui. A partir daí, acho que morri. Mal o relógio marcou os 30km, encostei e comecei a caminhar. Num movimento estranho e desconjuntado, depois de tanto tempo a correr. Não sei se é a isto que chamam o muro. Talvez. Mas sei que morri. Não ajudou nada que este momento tenha coincidido já com o percurso dentro da Casa de Campo. Aquele parque infernal. O calor. O chão de terra batida. A monotonia do percurso. A falta de apoio. Desmoralizei mesmo e só via gente a caminhar à minha volta. Estávamos todos desanimados.

Houve, no entanto, um momento de esperança renascida quando tomei o gel da Gu. Se houve decisão sensata que eu tomei ao longo do dia, foi a de guardar este gel para este momento. O gel é espesso. Muito espesso. Mas foi, literalmente, como estar a comer um brigadeiro. E se há coisa que me pode dar ânimo, seja em que circunstância for, é a sensação maravilhosa de estar a comer um brigadeiro. Foi o meu momento zen de introspecção, para tentar ganhar forças para o que aí vinha.

Andei cinco quilómetros a sofrer naquele parque interminável. Foram, sem dúvida, os piores 5km da prova. A tentar alternar corrida e caminhada. Sem muito sucesso. Quebrei muito aqui. Mas, eventualmente, talvez porque o gel começou a fazer efeito, consegui ganhar coragem para voltar a correr e o parque estava a chegar ao fim. Claro que o parque terminava numa subida horrível. Claro. Mas, depois disso, já depois dos 35km, tivemos uma folga de subidas, tivemos um abastecimento, e  começámos a descer ligeiramente. A música certa tocou e eu fui buscar forças não sei bem onde.



Lá fui andando. E correndo. E andando. Mais correndo do que andando, e os loucos dos espanhóis que só gritavam "ya lo tienes!". Já faltava pouco. Muito pouco. E eu comecei a achar que, mesmo que fizesse o resto a caminhar, estava feita.

Mas eu não queria fazer o resto a caminhar. Tinha ido para lá com um objectivo: fazer menos de cinco horas. E havia de conseguir. Mesmo que nesta fase tenha percebido que o grande desfasamento entre o meu relógio e as marcações oficiais, baralhavam as contas que tinha estado a fazer até aí. Até aí, achei que talvez conseguisse fazer quatro horas e cinquenta. Nesta fase, percebi que estava com 700/800 metros de diferença do real. O que, naquele ritmo, seriam facilmente 5 ou 6 minutos de diferença. Comecei a achar que não ia conseguir fazer menos de cinco horas e isso mexeu comigo e desmoralizou-me. Tinha estado até aí tranquila da vida e confiante, mas foi pura burrice não ter feito estas contas mais cedo. Agora era tarde para recuperar... Foi assim que decidi que os últimos três quilómetros tinham de ser feitos a correr. E foram. Devagar, mas foram.

Lá segui eu na minha vida, a ultrapassar mais do que a ser ultrapassada, a continuar a receber os incentivos dos espanhóis. Nesta fase também ajudou, e muito, ver que o louco mais louco que eu, voltou para trás para me vir buscar. Estava no quilómetro 40, quase 41, acho, quando ele apareceu em sentido contrário. Mesmo depois de eu lhe dizer para não o fazer. Quem é que faz uma maratona, descansa e alonga, e depois volta para trás e faz mais uns quilómetros? Gente louca, claro. Mas as fotos falam por si.




(vamos embora, que agora é sempre a subir até à meta...)


Também foi muito bom sentir o apoio de quem estava a torcer por mim. Eu não lia as mensagens mas sabia que elas estavam a chegar. Sabia que havia quem estivesse a acompanhar a prova ao vivo. E foi tão bom e tão confortável saber que tinha gente a torcer por mim! 

Corria eu já no último quilómetro, quando o meu telemóvel começou a tocar. Soltei mais um palavrão (ups!) mas obriguei-me a não ver quem me estava a ligar. Passou-me tudo pela cabeça. Sabia que a qualquer momento podia chegar uma má notícia de Lisboa e tive medo disso. Mas também sabia que se fosse isso, não havia nada que eu pudesse fazer e eu tinha uma maratona para acabar.

E tinha. Já faltava pouco. Eu só queria acabar. Estava imenso calor. Estava cansada. Só queria chegar à meta. E já faltava tão pouco!

A fase final tinha outra vez imensa gente a apoiar. Palmas, incentivos, gritos de apoio.

Entrámos na recta final. Que era a subir, claro. Se começámos a subir, tínhamos de acabar a subir, pois claro.


(a foto do meu fotógrafo privado)


(a foto que, ao mesmo tempo, o fotógrafo profissional tirava)

Gostava de ter aqui uma descrição maravilhosa sobre como vi a luz, como foi uma experiência reveladora, que foram umas centenas de metros que passaram a voar e que eu adorei.

Mas não. Eu só queria chegar ao fim. Eu só queria passar aquele pórtico. Claro que me sentia feliz. Mas, ao mesmo tempo, estava como que anestesiada. Passei aquela meta e acho que só pensei: é isto? Já está? Dei uns passos, agarrei-me ao louco mais louco que eu, e fiquei ali uns momentos a olhar para o chão. A tentar absorver tudo o que tinha acabado de acontecer. Não pulei, não gritei, não chorei. Não consegui reagir. Passaram três semanas e acho que ainda não consegui reagir.



Ainda junto ao pórtico, peguei no telemóvel e vi que tinha sido o meu pai a ligar-me. Pensei o pior. Liguei-lhe. Perguntou-me se estava em pé ou sentada. Pensei mesmo o pior. Afinal, estava só a meter-se comigo para me dizer que se estava em pé era porque tinha corrido bem. Achava que eu tinha começado às nove, acreditava que eu faria menos de cinco horas, e achou que já me podia ligar. Matam uma pessoa do coração com estas coisas!...

Depois de refeita do susto, fomos buscar as medalhas e fazer a gravação do tempo. Foram exactamente quatro horas, cinquenta e seis minutos e dezassete segundos. Menos de cinco horas. Estava cumprido o objectivo.

(como é que eu acelerei nos últimos quilómetros que eram a subir? não sei...)

Quando, finalmente, li as mensagens do durante e as mensagens de parabéns quando acabei, não pude deixar de, mais uma vez, me sentir uma sortuda! E de ficar de lágrimas nos olhos, pois claro. Aí desse lado estão pessoas incríveis que me deram uma força tremenda e que tiveram um grande contributo em todo este processo. Já o disse, mas repito: esta medalha também é vossa!

Depois de mais umas fotos e de comer e beber o que ofereciam, era hora de regressar ao apartamento, de medalha ao peito. Ter marcado um apartamento a 1,5km da meta revelou-se muito sensato.Voltámos a pé, em modo recuperação activa.

E depois foi tomar banho, descansar, comer e beber. E tentar processar tudo o que aconteceu.

Sou maratonista. Fiz a minha primeira maratona. Se um dia me dissessem que eu chegaria a isto, eu não acreditava. Era pessoa para apostar que jamais tal aconteceria. Mas parece que sim.


22 de Abril de 2018 - EDP Rock'n'Roll Madrid Maratón - 4:56:17

12 comentários:

  1. Perfeito! Parabéns maratonista! E dentro do tempo previsto.
    Essa de voltar atrás depois de uma Maratona ainda não fiz. E sim, é de loucos, mas vivam os loucos!
    Estou mesmo a ver que um dia destes, às 3 da manhã, dás um salto na cama para festejar devidamente essa passagem pelo pórtico da meta. :)

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    1. Obrigada, mais uma vez :)

      Eu só me dou com gente louca... Não sei o que isso dirá de mim! Ahahah!

      Obrigada também pela tua força e apoio ao longo do processo. Também lá estiveste e acho que Sofreste tanto como eu ;)

      Beijinhos

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  2. Até eu fiquei de lágrimas nos olhos... Que força miúda! Muitos parabéns! Agora tenho de ir ali buscar um lencinho... :)

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    1. Obrigada, obrigada, obrigada :) um dia vais ser tu, que isto é contagioso :)

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  3. Fabulosa descrição de sentimentos e emoções de quando, na realidade, começa a Maratona (aos 30).

    E conseguiste uma grande marca!!!

    Sobre a não-reacção, foi o que me sucedeu na primeira. A emoção foi tanta que não consegui digerir nem reagir. Vais comprovar que nas tuas próximas as reacções já são mais reais. Notar bem que escrevi "tuas próximas", apesar de agora ainda não pensares nisso :)

    Adoro a foto que estás de costas com a meta à frente. Muito emocionante e com a particularidade de também teres a foto do outro lado.
    E muito bom e de grande importância o louco mais louco que tu ter ido ao teu encontro! :)

    Não me canso de te dar os parabéns! Foste uma heroína e que tiveste de lutar contra tudo. Mulher corajosa!!!

    Um grande beijinho Maratonista Inês :)

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    1. Tinhas mesmo razão quanto a isso... E quanto ao resto, pois claro :) Foram duas maratonas diferentes!

      Dadas as circunstâncias, e a tartaruga que eu sou, acho que foi um bom resultado, sim!

      Obrigada por essa partilha. Tenho-me sentido muito anormal em relação a isso...

      Não sei se farei mais alguma, mas hei-de falar sobre isso :)

      Também gosto muito dos dois lados da foto. É um luxo ter alguém assim ao meu lado :)

      Muito, muito obrigada pelas tuas palavras agora e ao longo dos últimos meses. Aquela meia em Cascais e tudo o que falámos, estiveram sempre muito presentes. Obrigada, mesmo!

      Um beijinho

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  4. Muito bom, muitos parabéns! Percebo perfeitamente essa sensação no fim, algumas das minhas maiores e mais dificeis conquistas tiveram exactamente o mesmo desfecho. A única sensação que consigo identificar é alivio! Quanto à tua quebra, acontece-me quando fixo uma meta mental e depois a atinjo, parece que o cérebro diz ao corpo que já está e este automaticamente desliga. Por mais quilómetros que faça, acontece-me sempre, acho que é perfeitamente natural. Depois é o espírito lutador que te faz voltar à vida! De repente ocorre-me que tens alma de ultra, pensa nisso para um dia destes :) Mais uma vez, muitos parabéns! Boa recuperação, espero que as coisas estejam mais calmas na tua familia. Foi uma montanha russa, acompanhar o teu blog nas ultimas semanas, que agora venha o alivio!

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    1. É, não é?... Acho que a tensão que acumulamos é tanta, que depois não é fácil descontrair e aproveitar o momento!

      O psicológico tem esse poder... Se nós próprios nos definimos limites (ou objectivos), quando os atingimos, estamos a dizer ao nosso corpo que já fez o que queríamos, e que pode mesmo desligar, como referes. Ultra?! Ahahah! Talvez um dia :)

      Obrigada pelas palavras! A montanha russa continua, mas há-de ter um fim. Espero. :)

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  5. Que bom, muitos parabéns! Que espetáculo!

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  6. Eh pah eu fiquei emocionada ao ler...
    Estiveste muito bem! Quando é a próxima? :p

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  7. Não tenho palavras pra isto!! És a maior!!

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